Federações partidárias, desafios e perspectivas | Artigo de Antônio Queiroz
Historicamente, os partidos políticos no Brasil sempre se coligaram para participar das eleições proporcionais, como forma de assegurar vagas na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores. As coligações permitiam que 2 ou mais partidos pudessem se unir, independentemente do posicionamento ideológico, para somar votos para atingir o quociente eleitoral e garantir representação nas casas legislativas. Após a divulgação do resultado da eleição, a coligação era automaticamente desfeita.
Tratava-se de verdadeira fraude à vontade do eleitor, porque ele votava em candidato de determinado partido, por concordar com a ideologia do partido e com as propostas do candidato, mas o voto poderia eleger outro candidato, de outro partido, com ideologia e visão de mundo complemente diferente da dele. E, terminada a eleição, a aliança era desfeita, com cada partido tomando rumo próprio. Isso aconteceu em todas as eleições proporcionais, num casuísmo e oportunismo vergonhoso, que desrespeitava a real manifestação de vontade do eleitor.
As coligações em eleições proporcionais, condenável quando feitas entre partidos sem afinidade programática — e isso aconteceu por negligência ou falta de critério dos dirigentes partidários — eram a única forma de os pequenos partidos, especialmente os de natureza ideológica, sobreviverem politicamente, já que isoladamente, disputando apenas com quadros próprios, não teriam como atingir o quociente eleitoral, condição necessária para assumir cadeiras como deputado ou vereador.
Esse mecanismo, entretanto, combinado com a permissividade para criação de partidos políticos, aumentou exageradamente o número de partidos com representação nas casas legislativas, a ponto de em algumas Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas e em bancadas estaduais e na Câmara Federal todas as vagas terem sido preenchidas por parlamentares de partidos diferentes, dificultando enormemente a governabilidade. Em 2014, por exemplo, cada um dos deputados federais eleitos pelo Distrito Federal pertencia a um partido distinto (PT, PSDB, PMDB, SD, PR, PSD, Pros e DEM).
EMENDA CONSTITUCIONAL 97
Em 2017, por intermédio da Emenda Constitucional 97, com o objetivo de enxugar o número de partidos com representação no Parlamento, o Congresso Nacional não só acabou com a possibilidade de coligação nas eleições proporcionais, como aprovou a cláusula de barreira, condicionando o acesso aos recursos do fundo partidário e ao horário gratuito do rádio e da televisão aos partidos que atingissem determinado percentual do eleitorado nacional, ou número mínimo de deputados federais a ser atingido pelo partido.
Na eleição de 2018, esse número mínimo foi de 9 deputados (em 2022 será 11) e a cláusula de barreira foi de 1,5% do eleitorado nacional (em 2022 será 2%), sendo pelo menos 1% em 1/3 dos estados. Ora, se os pequenos partidos não conseguiam nem alcançar o quociente eleitoral, que é o número mínimo de votos para eleger representante em determinadas circunscrições eleitorais, como iriam atingir a cláusula de barreira sem a possiblidade de coligação? Seria o fim desses.
Além disso, a Lei 14.211/21, com o mesmo propósito de enxugamento partidário, dificultou o acesso à propaganda eleitoral no rádio e na televisão aos partidos sem representação no Parlamento, reduzindo de 1/3 para 10% a distribuição do horário eleitoral gratuito entre todos partidos e federações. Com isso, reservou 90% de todo o tempo de rádio e televisão para ser distribuído proporcionalmente apenas entre os partidos com representação no Congresso. Essa nova regra dificultará enormemente a vida dos pequenos partidos e poderá ser mortal para os chamados partidos de aluguel, que viviam basicamente de negociar o horário para funcionar como linha auxiliar de grandes partidos.
SALVAÇÃO DOS PEQUENOS PARTIDOS
Para permitir a sobrevivência dos pequenos partidos, especialmente os ideológicos, o Congresso Nacional, por intermédio da Lei 14.208/21, autorizou a chamada federação partidária, estabelecendo que “dois ou mais partidos políticos poderão reunir-se em federação, para efeito de disputa eleitoral proporcional, e que, após registro perante o Tribunal Superior Eleitoral, atuará como se fosse uma única agremiação partidária durante toda a legislatura.”
Isto é, permitiu a união dos partidos e a soma de votos para efeito de eleição e acesso ao fundo partidário e ao horário eleitoral gratuito nas rádios e televisões, mas fixou período mínimo de 4 anos unidos, com liderança única no Parlamento. A lei, entretanto, preservou a autonomia dos partidos, mesmo que façam parte de federação, assegurando a preservação de identidade e autonomia para todos os fins.
A federação partidária, portanto, poderá ser a boia de salvação dos pequenos partidos. É que novas exigências foram instituídas para efeito de conversão de votos em mandatos, especialmente por meio da Lei 14.211/21.”
Pela nova lei, a partir de 2022, os partidos ou federações que não atingirem o quociente eleitoral só participarão da distribuição das sobras se tiverem atingido pelo menos 80% desse quociente e só podem ser eleitos os candidatos desses partidos ou federações que obtiverem votos correspondentes a pelo menos 20% do quociente eleitoral.
Antes, após terem sido preenchidas as vagas dos partidos que atingiram o quociente eleitoral e que tinham candidatos com votação igual ou superior a 10% desse quociente, as sobras ou as demais vagas eram distribuídas entre todos os demais partidos, desde que esse partido tivesse a maior média de votos e contassem com candidato com votação igual ou superior da 10% do quociente eleitoral.
O acordo entre os partidos para formar federações não será tarefa fácil. Há série de dificultadores. Um desses é a redução do número de candidatos que poderão lançar. Até a eleição de 2018, os partidos ou coligações poderiam lançar até 150% das vagas existentes na casa legislativa, podendo chegar a 200% nas unidades da federação com menos de 12 deputados.
A partir de 2022, cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa (DF), as Assembleias Legislativas e as Câmaras de Vereadores no total de até 100% do número de lugares a preencher mais 1. Como a federação equivale a 1 partido, o total de vagas deve ser dividido entre as legendas que a compõem, respeitando a cota de gênero tanto pela lista da federação, globalmente, quanto por cada partido, num acordo a ser confirmado pelas convenções partidárias.
MAIS DESAFIOS
Outro desafio dos partidos que optarem pela federação é que essa tem caráter nacional e vincula as legendas que a integram, proibindo que possam lançar ou apoiar candidatos majoritários fora desse arranjo, durante os 4 anos que estarão juntos. Essa mesma vinculação, que equivale a espécie de verticalização, vale também para as eleições municipais, ou seja, os partidos integrantes de federação terão que se entender para lançar os candidatos a cargos proporcionais e majoritários dentro da federação, aprovando os nomes nas convenções partidárias.
A federação, entretanto, pode ser benéfica aos partidos de esquerda. Se disputarem em federação, com a soma dos votos, poderão ampliar significativamente a presença no Parlamento, beneficiando-se especialmente das chamadas “sobras”, que serão distribuídas após o preenchimento das vagas pelo quociente eleitoral.”
Essa sistemática consiste na divisão do número de votos válidos atribuído a cada partido ou federação pelo número de lugares obtidos mais 1, cabendo ao partido ou federação que apresentar a maior média ocupar a vaga em disputa, desde que tenha candidato que atenda à exigência de votação nominal mínima. Repete-se a operação para cada 1 dos lugares a preencher.
Um exemplo pode ilustrar melhor isso. Suponha que em determinada unidade da Federação, na eleição para deputado federal, o número de votos válidos (que exclui brancos e nulos) tenha sido igual a 800 mil e o número de vagas na Câmara Federal daquele estado seja 8.
Para saber qual é o quociente eleitoral, ou seja, o número de voto que dá direito a 1 vaga, basta dividir o número total de votos válidos (800 mil) pelo número de vagas (8), chegando ao número de 100 mil votos. Então, cada partido ou federação de partidos que obtenha votação igual ou superior a 100 mil terá representação na Câmara Federal. Para cada grupo de 100 mil votos, o partido ou federação terá direito a mais 1 vaga, que sempre será preenchida pelo candidato mais votado, em ordem decrescente, desde que ele tenha votação igual ou superior a 10% do quociente eleitoral.
Com base no exemplo acima, se o partido A (ou federação) alcançar 300.240 votos terá direito a 3 vagas e ficará com sobra de 240 votos, e o partido B (ou federação) obtiver 140 mil votos terá 1 vaga e disputará a outra vaga com os 40 mil votos de sobra.
Para saber quem irá ocupar a vaga em disputa, devemos dividir os 300.240 votos do partido A por 4 (as 3 a que têm direito mais 1) e chegaremos à média de 75.060; e o mesmo procedimento deve ser feito em relação ao partido B, ou seja, dividindo seus 140 mil por 2 (1 vaga a que tem direito, mais 1 que disputará no sistema de sobras), a média será de 70 mil.
Portanto, a vaga ficará com o partido A, que obteve a maior média a despeito de ter tido a menor sobra. A regra de maior média invariavelmente beneficiará os partidos ou federações de partidos com o melhor desempenho eleitoral.
Registre-se, por fim, que a federação e as outras mudanças na legislação eleitoral podem aperfeiçoar o sistema partidário, de um lado favorecendo a união entre partidos com afinidades políticas, e, de outro, reduzindo o número de partidos, especialmente os chamados partidos de aluguel.
A federação, indiscutivelmente, é melhor que a coligação em eleições proporcionais. A diferença entre essas é que a federação tem abrangência nacional e caráter permanente, determinando período mínimo de união entre os partidos (4 anos) — o que requer identidade ideológica ou programática — enquanto a coligação era apenas arranjo provisório para superar o quociente eleitoral no pleito, sem qualquer compromisso programático, que era dissolvida logo após o pleito eleitoral. Porém, para que essa união seja “estável”, será preciso que os integrantes da federação tenham efetiva disposição de valorizar as afinidades programáticas, e não as diferenças.
Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político, mestrando em Políticas Públicas e Governo pela FGV, diretor de Documentação licenciado do Diap, e Sócio-Diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governo.